menstruação de boyceta

Uarê Erremays
4 min readAug 26, 2020

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Logo no começo da quarentena infinita, uma amiga me pediu para que escrevesse sobre menstruação. Desde então tenho tentado e não consigo. Esse mês menstruei pouco e diluído depois de uma semana de atraso. Sinto que seja tempo dessa escrita.

Com 26 anos, morei numa ilha, no alto de uma montanha, numa casa cercada de floresta. Foi fundamental para a percepção do corpo como parte integrante do todo, esse limite-pele muito fluido. Nas noites acompanhei o caminhar das estrelas, o passar dos meus humores e das luas, como as práticas de corpo mais ou menos cuidadosas interferiam no processo de sangrar. Foi um tempo importante de entender o ritmo que sou, como parte do eu coeso e integrado a um tempo muito maior que as horas e os calendários. Foi bom prestar atenção gentil a um ciclo que me regeu pela maior parte dos meus anos.

Quando voltei a São Paulo, e a urbe sem dúvida atropela as subjetividades, sobretudo as que atrasam a produtividade. Nos primeiros meses após a chegada, buscava estar fora de casa quando não estivesse sangrando: não me adaptei a nenhum dos métodos de contenção e prefiro sangrar — e manchar roupas e cadeiras e lençóis. Pouco discreto. Cada vez que compro um pacote de absorventes, vivo dilemas morais: por que um processo orgânico espontâneo se torna um constrangimento? Quando comecei a dançar (os corpos da dança contemporânea são assépticos), foi tão difícil a aprender a escorrer suor e sangue. A ser suja.

Entender o tempo e as urgências do corpo durante as quatro semanas que compõe o período menstrual foi mecanismo para a manutenção da sanidade. Convivendo com depressão e ansiedade em contexto de capitalismo, é muito importante conseguir identificar os momentos de tombo para saber o que fazer a seguir. Saber cuidar das próprias dores, saber quando pedir ajuda. Cuidar do corpo todos os dias para amenizar as cólicas; saber como aliviar o ciático. A autonomia do cuidado que precisa ser cotidiano, para que as quebras não sejam sinônimo de abandono.

Comecei o processo de hormonização com testosterona em dezembro de 2019, sem acompanhamento médico. Tudo que aprendi sobre os processos de transição hormonal foi ouvindo meus amigos queridos, que vão abrindo caminho e contando os conhecimentos que não interessam à classe médica ou a indústria farmacêutica. Corpos experimentais, encarnando seus próprios desejos sobre como existir; compartilhando entre nós para acalmar as agonias de uma puberdade autoinduzida. O corpo toda manhã atualizado em desconhecimentos desde a noite anterior.

Cada mês que passa, sinto menos ligações estruturantes com o ciclo menstrual.

Nas curiosidades químicas, encanei nos hormônios FSH e LH, produzidos pela hipófise, que, após a fase embrionária, só voltam a ser produzidos durante a puberdade. Nos corpos que menstruam, eles se comportam de maneiras cíclicas correspondentes à preparação do corpo para um ciclo fértil. Os picos de FSH e LH estão intimamente ligados com a liberação de estrogênio e progesterona. Nos corpos com testículos, o LH estimula a produção da testosterona — e esta regula a produção de FSH e LH, de maneira contínua, sem picos.

Espalho na pele testosterona sintética, o corpo segue nessa obsessão química de gestar, só imagino o caos comunicacional na produção de hormônios. Tudo muito complexo — e também são pulgas, uma vez que não encontrei artigos que tratassem especificamente da relação desses hormônios em corpos transmasculinos em TH. Não sei que calma me daria ter alguma ideia do que se passa sob a pele, se as agonias uterinas, sanguíneas, fluidas seguem aqui.

Foram 23 sachês de Androgel 10mg, segundo ciclo de T reciclada ganhada; primeiro ciclo com a dose máxima. Intenso, feroz. Já sinto saudades do cheiro de álcool gelado espalhando na barriga. Mudou tudo de novo: o cheiro, o tesão, o formato da cara. Entalou na garganta um choro raivoso. Por que estou fazendo isso comigo? Ainda não tenho uma resposta. Passei um mês de infinita tristeza, agosto é sempre assim. Fez cinco anos da passagem do vô, cinco anos de Erremays. Deve estar fazendo um ano que morreu o pai. Ainda reverbera. Calhou (?) de falhar o sangue, tudo junto, tudo a seu tempo.

Achei que talvez não sangrasse mais, que tivesse perdido o ciclo assim. Num piscar. Ainda bem que a sabedoria dos migos orientam e acalmam, o que seria de mim sem os capricórnios. Ainda bem que me pedem para escrever, porque eu com a minha mão vou perdendo relatos importantes, afinal o corpo muda todo dia, velocidades púberes. Fica parecendo despedida. Esse corpo novo desconhecido tensionando, expandindo, ganhando forma, lustrado a creme de vitamina T. Lembro os motivos de começar: ver o que acontece. E vi que era bom.

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Uarê Erremays
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Written by Uarê Erremays

NBoyceta, artistão, não-mono e ilhado.

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